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terça-feira, 6 de setembro de 2011

Quando a literatura se ajusta a sua época

"A literatura é sempre uma expedição à verdade." (Franz Kafka)*
"Os governos suspeitam da literatura porque é uma força que lhes escapa." (Émile Zola)**



Nestas férias de Julho pude concluir a leitura de “Grandes Esperanças”, do inglês Charles Dickens, e confesso que me surpreendi muito com a obra. Comprei este livro porque está, segundo uma eleição da revista Época de 2000, entre as 19 maiores obras dos séculos XIX e XX, e não me arrependi em nada. O que me mais fascinou, porém, não foi a narração das aventuras de Pip – a personagem principal –, mas suas alterações psicológicas, ou melhor, seus anseios. É neste ponto que entendemos que a literatura, muitas vezes, reflete sua época, não apenas os costumes e a política, e sim os desejos dos indivíduos. Indubitavelmente não é de hoje que percebi isso, todavia esta obra me fez pensar como havia tempos não fazia.


Pip era uma personagem perfeitamente moldada por Dickens para nos passar uma idéia. O livro, nos tempos do autor, era lançado em folhetins, em partes, ao contrário de hoje, e o público aguardava com ansiedade angustiante pela continuidade das aventuras – a literatura em folhetins era tão popular quanto um episódio de novela hoje. Pip era uma criança, um garoto, que vivia numa aldeia, no interior da Inglaterra, cujos pais faleceram antes que pudesse conhecê-los, passou, pois, a viver com a irmã e seu marido, o qual seria um dos melhores amigos que teria na vida. Enfim, a questão é que a criança vivia uma vida rasa, sem muitas perspectivas, seria um ferreiro, tal qual o cunhado, de certa forma ignorante, como muitos conterrâneos. Para a personagem isso nunca foi um problema, até que conheceu uma garota abastada que lhe caçoou, demonstrou como seu modo de se vestir era rude, seu intelecto era pífio e estava fadado a permanecer naquela existência pobre.

A partir daí sua consciência mudou drasticamente, suas botas e vestimentas outrora fascinantes tornaram-se motivo de vergonha para si mesmo, passou, ainda, a reparar nos trajes e modos de sua irmã e cunhado como também vergonhosos, ignóbil. E aqui é o ponto interessante – será que no mundo isso também ocorre ou só na literatura? Óbvio que acontece. E muitas crianças ao se darem conta deste fardo que as acompanhará tornam-se tristes, aturdidas, revoltadas. O fato é que Pip passou a nutrir esperanças de que poderia ser cavalheiro um dia, para poder amar aquela bela criatura que outrora o repudiou por ser um simples aldeão, de roupas rotas e simples.

No decorrer da narrativa, ele recebe, numa noite, a visita de um advogado em sua humilde casa, e este distinto cavalheiro, para a surpresa de todos, comunica a Pip que nosso heroi terá as condições de ascender na vida – receberá uma educação primorosa, tornar-se-á um cavalheiro. São suas grandes esperanças, daí o nome do livro. Tal qual na vida real algumas pessoas têm a sorte de serem gratificadas e seu desejo se realiza. Porém, o benfeitor de nosso herói não é revelado e só o será no futuro. O resto da narrativa, todavia, não nos interessa, muito embora seja fantástica e cheia de emoções.

Charles Dickens, de forma magistral, constrói uma história pulsante e muito próxima da realidade de seu tempo, e o caráter de longevidade que acompanha a obra é compactuado por todos os leitores ao longo de todos esses anos. A realidade encontra-se na forma dos desejos de Pip, imagine-se em plena Londres, em plena Inglaterra, numa época em que os Estados Unidos da América era uma forma de escape daquela realidade, uma esperança aos menos abastados – camponeses, assassinos e operários britânicos faziam fortuna na América. Além disso, a Revolução Industrial já estava em curso, a burguesia estava a pôr na mesa todo seu poderio, seus costumes, tudo. O povo, entretanto, continuou entregue à própria sorte e aos trabalhos degradantes. Quem não desejaria ser parte da burguesia? Quem não tinha grandes esperanças? Pip, portanto, era uma personagem em que se espelhar.

Ora, desde a Revolução Francesa – na qual a burguesia conquistou definitivamente o poder político – a literatura mudou bastante. Outrora as personagens eram inquietas, buscavam alterar o mundo, eram revolucionárias, mesmo que não politicamente, suas ações fugiam do padrão. Provavelmente isso tenha relação direta com a Revolução Francesa, pois o mundo exalava mudança, depois desta ninguém queria alterar a estrutura política, cultural e social vigente. É claro que há autores que fogem a esses padrões, mas são poucos.

Tudo isso explica os anseios de Pip, mas assim como ele, muitas pessoas hoje buscam melhoria de vida, aguardam esperançosamente um patrono ou a intervenção da remota Providência Divina. Nada mudou. Anos se passaram desde a criação de “Grandes Esperanças”, em 1860, no entanto a leitura de Charles Dickens mantém-se atual, talvez por isso, além de seu lirismo poético, esta obra foi indicada entre as 19 melhores dos dois últimos séculos. Dickens, ainda, é o criador de “Oliver Twist” e “David Copperfield” – esta também foi eleita entre as 19 melhores –, duas outras obras monstruosas, aplaudidas em todo o globo.

Portanto, da próxima vez que você ler algum clássico da literatura tenha em mente que clássicos não são feitos por uma boa história ou porque foram escritos há tempos. Um clássico, para se fazer justiça, necessita de ser bem escrito, passar pelo teste do tempo, possuir uma trama envolvente e, o mais importante, conter algo que nos faça refletir, o que os chamados “fast-foods literários”, que povoam as livrarias, não têm. E “Grandes Esperanças” é, definitivamente, um clássico, pois Pip, antes de almejar ser, descobriu que o importante neste mundo é possuir, ter posses, privilégios, gozar de boa vida.


*Kafka era tcheco e foi um dos grandes escritores do Século XX, é autor dos aclamados “A Metamorfose” e “O Processo”. O termo “kafkiano” tornou-se sinônimo de absurdo, pois seus livros sempre seguiam a linha do ilógico, como em “A Metamorfose” em que a personagem acorda na forma de barata.

**Émile Zola foi um escritor francês do século XIX criador do Naturalismo literário. É autor da fantástica e da mais importante obra do gênero – “Germinal”. Nesta ele descreve as condições de vida dos trabalhadores nas minas de carvão, com seus anseios, sua degradação e suas lutas, tudo isso entremeado às idéias socialistas e anarquistas que circulavam abundantemente na época. É, diga-se de passagem, um dos meus livros favoritos.

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