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quarta-feira, 20 de abril de 2011

O poder de um livro

"Se existe alguma coisa mais pungente que um corpo agonizante pela falta de pão, é uma alma que morre de fome de luz." (Victor Hugo)

"Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século - a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância - não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis."

Assim começa o melhor livro que li até hoje em minha vida. Este é o prefácio que, apesar da idade, mantém-se atual. São linhas que chocam, imagine isso em pleno século XIX, século em que o Romantismo dominava a literatura, a burguesia vivia de livros em que causas sociais não eram muito discutidas, abordadas.
Mas eis que o francês Victor Hugo escreve “Os Miseráveis”. O título indica, obviamente, tudo, porém não pense que ele escreverá apenas sobre pessoas miseráveis, em situações precárias. Este livro pelo tamanho e imponência de mais de mil páginas falaria apenas de pobreza? Não seja tolo, o poeta, romancista e dramaturgo Victor Hugo tem uma visão e um pensamento muito progressista em relação ao panorama daquele século, era dono de uma genialidade raríssima. Era tachado como revolucionário, quer dizer, tachado não, ele realmente era, contudo não como muitos insinuavam. O fato é que suas idéias não eram para aquele século, eram grandes demais para as mentes estreitas da burguesia da época.

Nenhum livro deu-me um prazer tão grande ao ser lido como este, a cada página sentia um regozijo imenso, cada página era como um descortinar de um mundo, da França do século XIX; conseguimos entender perfeitamente o quadro político, sócio-econômico e cultural, assistimos tudo de primeira classe. Uma das coisas que mais me fascinaram em Victor Hugo, além das idéias, era a facilidade com que escrevia – vide o prefácio acima. Aliás, até hoje quando leio Victor Hugo parece-me que ele escreve com a mesma facilidade com que respiro, é uma classe impressionante, metáforas arrebatadoras e críticas ora veladas, ora ácidas. Saramago, pra mim, também é outro escritor fantástico – como meus amigos de turma bem sabem.

Esse livro tem de tudo – redenção, amor, ódio, revolução, ganância, altruísmo, amizade, esperança e muito mais. Victor Hugo consegue condensar em um único livro quase todos, ou senão todos, os sentimentos humanos, daí também o caráter de imortalidade da obra. O escritor em muitos momentos põe o dedo na ferida, naquilo que há de mais podre em sua sociedade, e escancara para o leitor. Daí vem o fato de a burguesia não ter gostado tanto do livro, muito embora Victor Hugo fosse dessa classe e freqüentasse toda a luxúria dos grandes salões, palácios e sociedade burguesa, ele sentia asco em meio a tanta futilidade e falsidade. Além de um romântico inveterado, era um revolucionário.

Há passagens chocantes que volta e meia eu me pegava com o livro em mãos fitando o além, em meio a devaneios sobre o que acabara de ler. Era sempre instintivo, inconsciente, quando me tocava estava eu lá com a leitura parada e refletindo. Perguntava-me se eu seria como um dos personagens que jogou uma rosquinha no lago para alimentar os belos cisnes, ao passo de dá-la a duas crianças famintas cujos estômagos rugiam bem ao lado. Perguntava-me também se seria como alguns dos personagens que davam roupas esfarrapadas, tênis e sapatos desgastados aos pobres pensando que ajudar os necessitados com esse tipo de coisa era uma grande contribuição e, portanto, eram ótimas pessoas. Há também a questão dos meninos de rua, que eram uma ‘praga’ na época em plena capital francesa, especialmente no reinado de Luis XIV, e a polícia dava um jeitinho de sumir com eles; o problema é que alguns deles tinham família e quando os pais reclamavam os filhos perante as autoridades, os pais delicadamente desapareciam de cena, quem sabe para uma vala... Como não se sensibilizar com a personagem Fantine que vendeu aquilo que mais amava em seu corpo, suas lindas madeixas douradas – as quais se tornariam perucas e vendidas à burguesia a preços exorbitantes –, em troca de míseros tostões para sustentar a filhinha? E mais tarde venderia a dignidade, o próprio corpo na rua. A exploração infantil e o ódio à elite por parte do povo são também abordados por Victor Hugo, situações bastante comuns nos dias atuais.

Mas o livro não trata apenas disso, é um prato cheio aos amantes da história, nele há uma descrição da Batalha de Waterloo – na época em que escrevia “Os Miseráveis”, Victor Hugo foi ao campo em que havia sido a batalha e anotou todos os detalhes pertinentes –, uma descrição breve da revolução de 1830, uma belíssima descrição dos esgotos de Paris e uma descrição da frustrada revolução dos estudantes de Direito.

Além das questões políticas o que me chamou mais atenção foi a forma com que Victor Hugo trata o sentimento humano mais sublime – o amor. Este vai além do amor a outra pessoa, refere-se a toda humanidade. Obviamente que a válvula propulsora deste sentimento dá-se entre Marius e Cosette. Ele é um estudante politizado, intelectualizado, participante de uma ‘sociedade secreta’ que busca melhoria do povo através do direito de voto e da manifestação pública. Ela, uma simples moça, que leva uma vida tipicamente burguesa. Eles apaixonam-se, mas o medo da rejeição está presente, latente – a caracterização e profundidade psicológica das personagens é outro ponto fabuloso da obra. Após muito tempo, quando Marius percebe que pode perdê-la põe seus sentimentos em uma carta, cuja frase inicial é a melhor definição de amor que pude ler, até melhor que a de Stendhal: “A redução do universo a uma única criatura, a dilatação de um ser até Deus, eis o amor.”

Após a declaração em forma de carta contendo a bela frase, precipita-se uma revolução para a qual Marius e seus amigos ainda não estavam preparados. Aí que Victor Hugo mostra o verdadeiro sentido do amor, o rapaz despede-se da moça, ela, por sua vez, clama insistentemente que ele desista da revolta e fique em seus braços. Marius, contudo, corre em direção ao coração da batalha, carregando um turbihão de sentimentos. Marius corre para a morte certa, corre por amor à Cosette, por amor aos seus amigos que estão nas barricadas, por amor ao povo francês, por amor à humanidade. O rapaz, pois, vai em busca de uma França melhor às pessoas que ama, inclusive Cosette, esse era seu legado. Aqui se percebe o verdadeiro sentido que a Democracia tinha para Victor Hugo e muitos de sua época, aquela revolução mesmo sem sucesso, despertaria os olhos da sociedade para a busca pelo voto universal. O prelúdio da revolta é descrito magistralmente por Victor Hugo, com as pessoas trancafiadas em casa ouvindo o barulho ecoar por toda Paris e vai mais além, filosofa sobre aquelas pessoas que, ao invés de abraçar a nobre causa da luta política pela Democracia usurpada por Napoleão e seus aliados políticos, preferem ouvir os gemidos dos combatentes e viverem nas mesmas condições subumanas, miseráveis e medíocres. A luta nas barricadas pra mim é, de fato, a melhor parte do livro, os diálogos carregados de emoção e a descrição são sublimes. A bem da verdade, Marius é o reflexo do que nós, jovens, somos – revolucionários, loucos, racionais, apaixonados. Por isso a frase: “nos olhos de um jovem arde uma chama, nos de um velho brilha uma luz.”

Além do lirismo poético, das perfeitas descrições, da complexidade das personagens, os temas abordados são pertinentes atualmente. A Democracia tão buscada por Victor Hugo, que pensava ser a salvação da humanidade para as mazelas sociais e as injustiças do Despotismo, é ultrajada por políticos corruptos, por uma sociedade mesquinha.

Portanto, “Os Miseráveis” é uma reflexão profunda do que é ser humano, do que é lutar por ideais, o que é amor. E no fim de todo o livro percebemos que os miseráveis não são as personagens em situações degradantes, mas toda humanidade. Todos temos uma alma miserável. Alma esta que pode se tornar luz, como a personagem principal que outrora cheia de ódio pela sociedade teve sua redenção e pôde, finalmente, entender a frase dita pelo Bispo Bienvenu: "ser santo é exceção; ser justo é regra. Errem, desfaleçam, pequem, mas sejam justos." Imagine ler esse livro no final de sua adolescência... Pois é, “Os Miseráveis” foi talvez a pá de terra na formação do meu caráter. Eis o poder de um livro, de um clássico da literatura.

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